A revolução das redes

A colaboração solidaria como uma alternativa pos-capitalista a globalização atual

Editora Vozes, Brasil, 2000

Resenha

por Paulo César Carbonari

A Revolução das Redes é um livro que aponta alternativa séria e consistente ao modelo capitalista atual. Articulando temas filosóficos, sociais, políticos e seus desdobramentos econômicos, oferece alento teórico e instrumentos práticos de ação para a organização das classes populares e dos excluídos.

É a primeira obra publicada por Mance, um filósofo e educador, militante das causas populares. Incansável na luta pela justiça, atua há anos como educador junto a movimentos populares, sendo um dos assessores da Central de Movimentos Populares. Exímio filósofo, é um dos principais divulgadores da Filosofia Latino-Americana da libertação no Brasil, tendo sido fundador e presidente do Instituto de Filosofia da Libertação (IFIL), sediado em Curitiba, PR. O livro é a sistematização de sua busca por um modelo alternativo com força capaz de mobilizar agentes sociais e de motivar à organização da sociedade em vista da transformação do atual estado das coisas sociais, políticas e econômicas.

A reflexão é apresentada em dois longos capítulos, com seis anexos. O primeiro capítulo apresenta e discute conceitos fundamentais, O segundo expõe a proposta de redes de colaboração solidária. Os conceitos fundantes são trabalhados de maneira consistente, fazendo a revisão da literatura sobre o assunto e, acima de tudo, sistematizando a prática histórica de diversos agentes sociais. O conceito central é o de colaboração solidária, articulado à importância da organização de espaços públicos não-estatais em torno do consumo como mediação para o bem-viver. As redes de colaboração solidária aparecem como a alternativa organizativa em vista do enfrentamento da globalização capitalista.

As redes são apresentadas em sua dimensão econômica fundamental, através da descrição exaustiva dos processos de organização em suas diversas dimensões estruturais, sempre tendo em vista a formulação de condições de desenvolvimento de uma economia solidária centrada na colaboração solidária. O texto também se ocupa de discutir alguns equívocos sobre a economia solidária. Explora especialmente o potencial de resistência e de real alternativa estratégica ao modelo capitalista nela contido. Como argumento forte neste sentido, mostra a importância de centrar o debate sobre economia solidária na colaboração solidária, um conceito mais complexo e completo que o primeiro.

Ao final do segundo capítulo, debate brevemente as dimensões política e cultural da colaboração solidária. Nos anexos apresenta questões complementares relevantes para a organização prática da proposta que sustenta ao longo do texto.

O debate sobre economia solidária tem crescido no seio das organizações populares. O texto de Mance se insere neste contexto e oferece um diferencial político fundamental. Segundo o autor, não basta preconizar uma economia solidária, é preciso encontrar um elemento articulador fundante para que as diversas experiências históricas sejam potencializadas para além da resistência, pura e simples, ao modelo capitalista. O nó górdio diferencial está no conceito de colaboração solidária. Citando o texto:

« O objetivo da colaboração solidária   é garantir a todas aspessoas as melhores condições materiais, políticas, educativas e informacionais para o exercício de sua liberdade, promovendo assim o bem-viver de todos e de cada um. Não se trata apenas de uma proposta econômica para gerar empregos e distribuir renda. Mais do que isso, trata-se de uma compreensão filosófica da existência humana segundo a qual o exercício da liberdade privada só é legítimo quando deseja a liberdade pública, quando deseja que cada outro possa viver eticamente a sua singularidade dispondo das mediações que lhe sejam necessárias para realizar ? nas melhores condições possíveis ? a sua humanidade, exercendo a sua própria liberdade. Igualmente, sob esta mesma compreensão, a liberdade pública somente e exercida de modo ético quando promove a ética realização da liberdade privada » (p. 179).

A novidade organizativa está em levar a sério o consumo, recuperando a velha idéia de que consumo e produção estão estreitamente articulados. Numa sociedade marcada pelo consumo alienado, que transforma supérfluos em necessidades, a proposição do consumo solidário indica a possibilidade de organização coletiva do consumo. Partindo do consumo compulsório (aquilo que é realmente necessidade básica), pode-se abrir mecanismos de potencialização, em cadeia, da produção de bens e serviços. A idéia de consumo solidário entende o consumo como mediação do bem-viver que, por sua vez, é, sempre, de algum modo, um compartilhar. Segundo o autor:

« Praticar o consumo como mediação do bem-viver requer o refinainento das sensibilidades e sentidos humanos, bem como o desenvolvimento de critérios avaliativos a partir dos quais selecionam-se os objetos, dentro das possibilidades de consumo que cada um tenha, que venham a contribuir, da melhor maneira, com a singulariza ção de cada pessoa, com o bem-estar social e com a preservação dos ecossistemas. Assim, para que se possa generalizar socialmente o ?consumo como mediação do bem-viver? énecessário superar tanto as formas de consumo compulsório quanto as formas de consumo alienante » (p. 28).

O consumo solidário, como mediação do bem-viver, indica a possibilidade de ir construindo processualmente uma nova sociedade pós-capitalista, organizada na base da colaboração solidária.

O modelo organizativo para concretizar a colaboração solidária é a formação de redes. A rede é a conexão entre as diversas iniciativas inicialmente isoladas e a multiplicação de células potencializada pela própria rede, sob os princípios da intensividade, da extensividade, da diversidade, da integralidade e da agregação. A construção de redes, segundo o autor oferece condições para acumular poder em vista de promover uma verdadeira revolução, tanto no sentido econômico quanto social, político e cultural. Esta revolução, especialmente do ponto de vista cultural, síntese do conjunto da revolução em sentido amplo, terá condições de afetar cinco áreas fundamentais da organização da vida:

« a) socialização e produção de conhecimentos científicos e tecnológicos; b) difusão de uma nova ética centrada na colaboração solidária que visa promover as liberdades públicas e privadas; c) difusão de uma nova política; d) difusão generalizada de práticas artísticas mediadas pelas mais diversas linguagens, promovendo a livre expressão; e) utilização dos mais variados mecanismos de comunicação por parte do conjunto da sociedade, possibilitando a cada pessoa exercer um papel ativo no processo de emissão e recepção de mensagens » (p. 39).

As redes de colaboração solidária, organizadas pela iniciativa dos próprios excluídos, têm um potencial forte de transformação em vista de um novo sistema de organização da vida, centrada no bem-viver de todos e de cada um. O novo modelo propõe: a) contra o individualismo, a colaboração solidária; b) contra a competitividade, a solidariedade; c) contra o desemprego, a geração de emprego; d) contra a destruição dos ecossistemas, o desenvolvimento ecologicamente sustentável; e) contra a exploração do trabalho, a redução da jornada de trabalho e o aumento do tempo livre; f) contra a dependência dos capitais externos, o aumento da poupança interna; g) contra a concentração de capitais, a distribuição da riqueza; h) contra o crescimento de metrópoles, o desenvolvimento sustentado e geograficamente distribuído; e i) contra a iniciativa privada, a livre iniciativa solidária.

A proposta defendida pelo autor é, sem sombra de dúvidas, ousada e desafiante. Num tempo em que o senso comum parece nos jogar na impossibilidade de identificar alternativas ao falso consenso da saída única através da globalização do capital, a proposta de Mance mostra que é possível buscar outros consensos. A profundidade e a multidimensionalidade da reflexão proposta por ele convoca ao permanente exercício de formulação teórica e prática de caminhos alternativos. Sua proposição tem a intenção de mostrar que o tempo das experiências de laboratório em termos de construção de alternativas ao capitalismo está precisando ser superado. Estamos ante a necessidade e a possibilidade de enfrentar com força o ídolo de pés de barro, corroendo-o por dentro e atacando-o de frente. Mais do que uma bela intenção, a proposta sustentada por Mance mostra, com argumentos consistentes, sua viabilidade histórica. Um chamado concreto contra o conformismo e uma convocação para que todos os que ainda acreditam nos pobres ponham a « mão na massa » é a mensagem prática que o livro enseja.

Publicado em: Revista Libertação Liberación / Nova Fase. Curitiba, Ano 1, N.1, 2000, p.179-182